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11 outubro, 2007

Café curto e amargo, por favor (e saiu longo e doce)
História do dia de Uma qualquer vida (expulsa de Marte)

A hora de saída foi invulgar, ainda não tinham tocado as 7 badaladas ao entardecer; o pretexto: o levantamento de um carro que me custou telefonemas sem conta, o praticar de um português refinado em reclamação escrita e um misto de irritação e conformismo que não me reconhecia; a boleia foi do braço direito, que parece ir soltando um humor negro e cúmplice com o passar do tempo; e após assinatura de contrato, depósito de caução e verificação do estado do veículo, simultaneamente com o atendimento a um potencial cliente, na minha nova função de vendedora imobiliária em part-time, lá segui caminho, convicta que chegaria atempadamente à inauguração marcada da almejada máquina de café, no sitio do costume.
A paragem era obrigatória para atestar o depósito de diesel que certamente se esvaziará antes do retorno, e como o combustível mais barato da região tem anexado um multifunções com lojas, hipermercado e parqueamento gratuito, que menos que aproveitar para ver como andavam as modas e quem sabe comprar aquele presente de aniversário, que deveria ter sido entregue há não menos de uma semana. Depois de hora e meia de passeio, que por pouco que haja para ver sempre se encontra forma de torturar os pés, encaixados em saltos altos, bonitos e elegantes mas nada práticos para palmilhar quilómetros, segui caminho com a bagageira composta não de prendas de aniversário, mas de adereços para uma sala nova, cheia de antigos pedaços de uma qualquer vida.
No limite da hora – o atraso biológico, é cada vez mais, uma teoria científica pronta a ser provada – subi pressurosamente os sacos das compras para casa, arrumei o que havia para arrumar, troquei calças e sapatos e preparei-me para desprover-me de mala levando apenas: chaves, tabaco, telemóvel e carteira. E com chaves, tabaco e telemóvel em mão, comecei a procurar desesperadamente a carteira negra que carece de qualquer vínculo afectivo, mas da qual começava a sentir saudades apenas explicáveis pelo desaparecimento do todo o seu conteúdo. Esvaziei a mala, procurei em todas as assoalhadas, relembrei que a tinha utilizado para pagar uma portagem dez minutos antes e desci na esperança de encontra-la prostrada no chão do provisório automóvel. Não encontrei. Vendo os minutos passar, subi novamente os três lanços de escadas que me levavam a um lar (demasiado) vazio e recorri novamente habitação por habitação rebuscando nos sítios mais improváveis, não havia vestígios dela. Resignada e atrasada prossegui o caminho que me levaria a tomar um café forte e saboroso, sempre acompanhado por uma conversa amigável, indispensável a um bom viver.
Não pude confirmar se tinham efectuado alguma utilização do maldito cartão de crédito, mas por qualquer estranho motivo e apesar de tudo, decidi não cancela-lo. Descansei no sofá desconsolada com um azar de culpa própria, tentando entender o que tinha acontecido e culpando o maldito sistema de encerramento de portas do carro, vestida e na esperança de acordar de um mau sonho tendo como companhia a desaparecida bilheteira. Acordei sozinha e gelada.
Sem muito mais a fazer, além de ir verificando a actualização de movimentos a crédito e formalizar o desaparecimento de todos os documentos que me reconhecem como cidadã, segui a rotina habitual e rumei ao trabalho, após recolher as moedas que sempre disperso pelos mais diversos locais da casa para poder pagar a portagem. Rapidamente esqueci o propósito de telefonar para as autoridades a fim de obter as informações necessárias e questioná-los quanto ao aparecimento do espécimen de cor preta que misteriosamente tinha resolvido deixar a minha vida. Voltara à minha rotina num ápice, tudo questão de colocar o pé no asfalto da empresa. E entre a constatação de tempos perdidos e telefonemas em alta voz a tentar entender o inexplicável, o telemóvel toca. Número identificado mas desconhecido, a vendedora imobiliária veste a pele.
- Com quem estou a falar? - perguntam do outro lado;
- Com Uma vida qualquer – respondi prontamente sem a arrogância de quem assume, que o direito a saber com quem se fala é de quem atende e não de quem chama;
- Encontrei uma carteira que penso que é sua …
Caída junto ao amaldiçoado automóvel, vítima de correrias inúteis, foi gentilmente recolhida por um bom homem, capaz de se preocupar em encontrar o proprietário, explicar-lhe onde a encontrou e ainda referir-lhe o conteúdo da mesma.
Há dias de sorte e há vidas com sorte.

5 Comments:

Blogger Ana retalha...

E às vezes, há o sentimento de ainda existir justiça neste mundo tão estranho, quando a sorte acontece a quem a merece.
Podias era ter elucidado quando à acidez e tamanho do café pretendidos, mas prometo que o de hoje será de intensidade 8 ou 9, para compensar :-)
E aguardo a opinião do Trovador que deixou o vazio no lar e uma Lua a acordar só e gelada.
Besos

11 outubro, 2007 18:02  
Blogger Ana retalha...

Ah e já agora, espero que no futuro, não se aplique «a hora de saída foi invulgar, ainda não tinham tocado as 7 badaladas ao entardecer».
Não direi que tal hora passe a ser rotineira, porque isso seria pedir demais de uma vida sempre em movimento, mas que fosse, vá, duas vezes por semana já não era mau... :-)
Afinal, convém que a Vida tenha vida!

11 outubro, 2007 18:25  
Blogger Cravo a Canela retalha...

Eu até vou mais longe, para que a Vida tenha vida, e para que nós tenhamos mais Vida, com esta escrita que até me torna inimigo do ambiente, gastando folhas impressas para poder ler com a atenção e o silêncio merecidos...

Beijo admirador!

12 outubro, 2007 10:22  
Anonymous Anónimo retalha...

É quase incondicional o canto deste trovador. Por vezes a voz embarga, pela vulgaridade rotineira, enraizada e consciente, que não deixa que um lar preenchido e o corpo quente sejam vividos com a alegria e as ganas de quem quer uma Lua sempre cheia e radiante, numa Vida sempre nova. Mas o trovador persistirá em cantar suas loas de sonho e mudança, através dos tempos e dos espaços vincados pela realidade dos dias que passaram, de mão na mão com Aquela que canta, rumo a um futuro, que de incerto apenas tem a rotação que ditará a afirmação plena de uma consciência já em acelarada construção.
Com amor.

12 outubro, 2007 11:17  
Blogger Uma vida qualquer retalha...

Ana, já te disse que tens uma máquina de café fantástica?
A Vida tem vida, sempre a teve, seria capaz de dizer-te que aquela que quis, mas as vontades mudam mais rapidamente que os hábitos.
Besos niña guapa.
Charraz, a minha admiração em forma de palmas logo à noite.
Besos Majo.
Encantador de luas, te quiero mucho.
Beijo

12 outubro, 2007 11:54  

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